Migrações do povo da Beira Litoral (região Gandareza) para a região de Setúbal (zona Caramela)

Em princípios do século XIX, iniciou-se um movimento migratório dos povos da Beira Litoral, vindo a caminho do Alentejo à procura de trabalho.

Grande parte deste povo acabou por se fixar a trabalhar na região de Setúbal.

Na zona de Pinhal Novo, Vale da Hera, Poceirão, Lagameças e Venda do Alcaide regiões já habitadas, iniciaram os trabalhos de arranque de pinheiros, de surriba de terras em extensões de léguas, plantio de bacelos no que viria a ser a maior vinha do mundo. Com estes trabalhos, houve necessidade de recrutar muita gente, o que atraiu a corrente migratória das famílias beiroas. Este povo começou a aclimatar-se belamente ao novo meio.

A colonização, digamos, foi hábil e feliz, homens, mulheres e crianças, nas suas novas moradas dispersas por aqui e ali, na campina, foram esquecendo suavemente a sua região original e votaram-se inteiramente àquele trabalho titânico e remunerador.

Os anos foram passando, as gerações sucederam-se, àquele enclave de indivíduos estranhos começaram a misturar-se elementos oriundos dali, cruzando-se, libertando-se da situação de simples jornaleiros ou rendeiros, tornando-se alguns em proprietários de terras, de forma a darem um aglomerado de características perfeitamente definidas, exclusivas, como não há semelhante no resto do País, a que se deu o nome de Caramelos.

O Caramelo é incansável trabalhador que se ergue mal luz o buraco, e parte para o trabalho com a copa (alcôfa de comer) e a torta (enxada), a cavar á estona (sistema de arranjo dos batatais) em talhões geometricamente dispostos, separados por valas de rega.

As mulheres são anafadas, de rostos corados, pele tisnada pelos sóis de todo o ano, suor sempre lépido a saltar dos poros. Quando vão à vila, trajam blusa e saia de côres berrantes, amarelo ruivo, vermelho, azul elétrico, verde salsa (conhecidas na vila por cores Caramelas), com muitas rendas e entremeios, lenços garridos e sapatos atamancados.

 Na loja de fazendas, no tribunal, no consultório onde quer que iam, entram vagarosos, desconfiados, franzindo o sobrolho, pontas do xaile arrebanhadas pelas mãos, que ainda seguram o sombreiro ou a saquinha do dinheiro. Tratam todos de vossemecê, sejam pessoas de peso ou não.

Eram extremamente rudes por educação tradicional. Não havia grande afetividades dentro das famílias, e o que mais admira dada a sua procedência de regiões devotadas, é a perda quase completa do seu espírito religioso. Não rezavam, não iam à missa, não batizavam os filhos, poucos casaram pela Igreja. Perderam estes costumes por assimilação aos naturais, que já os não tinham. Mais a norte do Distrito, a realidade era diferente.

 A Barra Cheia, localidade pertencente aos concelhos de Moita, Palmela e Barreiro, terras que pertenciam ao conde de Palmela, zona de matos e pinhais, viria a ser desbravada pelo mesmo povo que aqui constitui uma colónia pura da região da Beira Litoral, fundaram e povoaram a localidade, sendo provavelmente que lhe deu o nome. Começaram a limpar as terras e a torná-las férteis, fixaram-se em palheiros e posteriormente em casas de barro com cobertura de palha, abriram charcos, instalaram picotas e algumas noras para tirar água, iniciaram as sementeiras de batatas, cereais, plantação de vinha e outras culturas. No final das colheitas regressavam à terra natal. O povo da vila chama-lhes Caramelos de ir e vir, e tratavam-nos com um certo desprezo. Os Caramelos receberam estas terras foreiras, vedaram as suas parcelas com enormes valados de areias, plantaram em volta oliveiras e figueiras, começando a constituir as estruturas necessárias para se fixarem em definitivo. As casas começam a serem construídas por toda a parte com adôbos de barro e cobertura em palha de centeio e mais tarde com telha.

Não perderam os povoadores da Barra Cheia os seus hábitos religiosos, e numa extensão de cerca de 5 kms construíram duas ALMINHAS. Numa delas, mais tarde, viria a ser edificada uma Capela onde existiam duas imagens cujos nomes a população não gosta de falar; não se consegue apurar concretamente, mas diz o povo que era a Santa Conicha ou Santa Conga e Santo Carário ou Eucarário, mas devido à população de Moita e Alhos Vedros gozarem os Caramelos pelos nomes dos seus Santos, os Caramelos acabaram por tornar sua Padroeira Nª. Sª. da Atalaínha por sua grande devoção a Nª. Sª. da Atalaia do Montijo.

Os Caramelos de ir e vir, ao fixarem-se em definitivo, acabam por se designar apenas por CARAMELOS, frequentavam todas as Romarias, Nª. Sª. da Atalaia, Nª. Sª. da Arrábida, Nª. Sª. do Cabo, Nª. Sª. da Escudeira e muitas outras. Faziam grandes bailes nos locais de encontro e de despedida das referidas romarias, caminhavam dois dias pela Serra da Arrábida para ir à Romaria por caminhos agora desconhecidos, acompanhados dos burros carregados com os alforges cheios de comida e vinho da colheita, e a tradicional bandeira do Círio em pagamento de promessa, e cantava-se:

Ó SENHORA DA ARRÁBIDA
SEU CAMINHO PEDRAS TEM
SE NÃO FOSSE SEUS MILAGRES
JÁ CÁ NÃO VINHA NINGUÉM.

Diz-se que este povo quando regressava à sua terra na Beira depois de ter feito as colheitas, se dedicavam à faina do mar, o que parece ter fundamento. Estando a Barra Cheia a 5 kms de Moita, sede do concelho, sempre viveu de costas para a Vila e efetuava todas as suas compras e abastecimento na vila de Setúbal e Sesimbra, terras de grande atividade marítima, trazendo as cangalhas dos burros cheias de vários géneros alimentares e peixe para secar.

Não se vivia mal, mas havia necessidades de poupar, só se calçavam em dias de festa, vinham à vila descalços, calçando-se para ir ao médico ou à Câmara. Em dias de festas de Nª. Sª. da Boa Viagem, andava-se uma légua até à entrada da vila com os trajes de festas vestidos, as mulheres usavam aventais para os proteger, descalços ou com tamancos velhos, numa saquinha de retalhos vinha o calçado e avental novo, à entrada da Vila, num charco todos iam lavar os pés, calçar os sapatos para ir à festa e trocar de avental, deixando escondido nas silvas e caniços o calçado velho a aguardar regresso.

As famílias eram unidas, haviam trocas de produtos de colheitas para que tudo houvesse em casa, as matanças de porcos e as adiafas eram sempre uma festa grande. Os casamentos duravam três dias até se comer o resto do dia principal.

As desfolhadas e malhadas eram alternadas um dia em casa de cada, havia vinho, pão de milho ou alvo, e o harmónio não deixava de tocar, cantava-se, dançava-se o lambão, a cigorra e as danças de roda à desgarrada em horas sem fim, os bailes eram feitos em casa de famílias onde havia filhas para casar, começavam ao sábado à noite, terminando ao nascer do sol do dia seguinte. O cerra-à-velha constituía uma festa para os mais novos ainda até à poucos anos. Os funerais eram grande acontecimento de dor, todos deixavam o trabalho para enterrar o parente ou amigo, de caixão às costas por meio de pinhais ia-se até Alhos Vedros ou Quinta do Anjo. Dada a grande distância, faziam grandes paragens, a fome apertava, as vinhas e pomares não eram poupados e os Quintajenses insatisfeitos com os prejuízos rogavam

“OS CARAMELOS HAVIAM DE MORRER TODOS NO MESMO DIA OU NUNCA MORRER NENHUM”.

Viveu-se com a fartura que a terra dava, veio a Guerra Mundial e de Espanha, havia dinheiro, não havia que comer e de semear, muitos emigraram para o Brasil e começou a perda das ligações dos Caramelos com os parentes na Beira, até fins da década de 50, ainda havia quem ia visitar a família a Mira e a Cantanhede, mas os mais novos nunca lá foram, falecidos os mais velhos perderam-se todos os contactos com a família.

A população da Barra Cheia e seus descendentes, orgulham-se do seu passado, pelo valioso contributo que deram aquela região, continuando a preservar os seus costumes e tradições culturais.

Manuel Fernando Miguel, 3 de Março de 1985
Apresentação num colóquio de Folcloristas em Cantanhede

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